Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Textos sobre Agricultura madeirense no Diário de Notícias da Madeira (1.ª série, quinzenal - de 9.9.2007 a 13.6.2010; 2.ª série, mensal, de 30.1.2011 a 29.1.2017; 3.ª série, mensal de 26.2.2017 a ...)
Este texto foi publicado no Diário de Notícias, no dia 27 de Agosto de 2023.
Apesar de ser Verão e de muitos estarem a desfrutar de uns merecidos dias de férias, é nesta altura que também temos mais disponibilidade para fazer outras coisas. Vai daí, desloquei-me ao Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira (ABM) para revisitar o acervo do Engenheiro Agrónomo Rui Vieira doado pela sua família em Novembro de 2019, e que está acessível para consulta, a quem estiver interessado. Quem lê os meus escritos sabe que gosto de recordar publicações, artigos e personalidades que contribuíram para que, no presente, se conheça o que foi e é a Agricultura madeirense. Do arquivo profissional do Engenheiro Rui Vieira, trago aqui um texto da sua autoria intitulado "O panorama da Agricultura madeirense", publicado no Jornal da Madeira (JM) de 1 de Maio de 1963, um número que assinalava o 31.º aniversário daquele matutino, e que merece a nossa atenção. Na introdução, Rui Vieira escreve que «Na nossa Ilha, a Agricultura é, para certos indivíduos, matéria, apenas, de cavaco nos cafés; para outros, singela e salutar recreação; para alguns, lucrativo complemento de outra actividade profissional; para bem poucos, objectivo primeiro de seus trabalhos e estudos; e, para muitos, é a sua Vida. Destes, somente os verdadeiros agricultores, que dia a dia lutam, para que a sua empresa melhor se equilibre, é que nós devíamos escutar a voz. Mas falta-lhes, geralmente, a plena consciência da sua força e dos seus direitos; e então outros surgem a defendê-los ou a esboçar em traços largos o panorama agrícola onde eles vivem. É este o meu caso (que me perdoem os bem-intencionados!); e não alijando a responsabilidade que me cabe, como técnico, retratarei a meu modo, e ao correr da pena, o actual quadro da heróica agricultura da minha Ilha». O então Chefe de Redacção do JM, Pe. Paquete de Oliveira, colocou três perguntas ao Engenheiro Rui Vieira, no sentido de facilitar-lhe a análise de tão complexo tema. A primeira era sobre a opinião do Agrónomo em relação à situação do panorama da Agricultura madeirense em 1963, ou seja, há 60 anos; a segunda acerca das principais causas ou factores que determinaram aquele contexto e a terceira sobre o que se poderia fazer para melhorar a Agricultura regional.
Em resposta à primeira questão o Engenheiro Rui Vieira traçou em nove pontos o que era a Agricultura madeirense nos anos 60 do século passado. A grande densidade populacional, uma indústria quase inexistente, uma população activa com 100.000 habitantes, dos quais metade se ocupavam da agricultura e pecuária, numa área agrícola de 25.000 hectares. Não obstante o número de pessoas que trabalhavam a terra, havia falta de mão-de-obra, pois os amanhos culturais eram quase todos feitos pela força braçal. O baixo nível de instrução e socioeconómico do trabalhador rural, o seu individualismo (pouco dado ao associativismo ou cooperativismo), uma assistência médica pouco estruturada e a ausência de protecção social, uma alimentação desequilibrada à base de batata-doce, massa e milho, eram outros aspectos graves apontados. A orografia e os poucos acessos nas freguesias impediam a entrada nas propriedades «já de si terraceadas» e oneravam bastante os produtos cultivados. O regime de exploração da terra que vigorava em grande parte das propriedades agrícolas, o da colonia, não permitia o rendimento desejado. A agropecuária regional era principalmente de auto-suficiência, isto é, produzia-se alimentos para o sustento da família. Só os que tinham terrenos a mais, ou que por via da emigração os tivessem adquirido, é que cultivavam mais, com as produções a serem vendidas aos intermediários. Dos 25.000 hectares de área agrícola, dos quais 5.300 hectares diziam respeito à área social, aos terrenos incultos, aos pinhais e aos matos, 76 por cento eram ocupados com hortícolas, 9 por cento com vinha, quase 8 por cento com cana-de-açúcar e 7 por cento com bananeiras. Dava-se conta do aumento da área de regadio dos aproveitamentos hidráulicos efectuados nas décadas de 50 e 60 do século XX, das adubações sistemáticas de estrume do curral e de fertilizantes químicos, estes últimos em excesso quando comparados com outras regiões do País. As pragas e doenças que afectavam os cultivos agrícolas já eram tratadas pela maioria das empresas agrícolas, com base nos conhecimentos existentes naquele tempo. Tal como acontece nos dias de hoje, o Engenheiro Rui Vieira constatava que «Abundam, entre o agricultor e o consumidor, os intermediários. Da actividade destes resulta que normalmente tem aquele que vender barato e comprar caro». A concluir, Rui Vieira resumia que «[…] o panorama agrícola da Madeira sem ser de total desalento, não é muito animador», apesar das ajudas do Estado, da Junta Geral e da Junta de Colonização Interna. Deixava uma nota de esperança que era preciso «[…] dar tempo a que a necessária evolução se processe nos moldes traçados pela Técnica ou pela própria Lavoura que, no caso da Madeira, tem sabido resolver em grande parte os seus próprios problemas de base». Quanto à segunda pergunta sobre as causas que levaram ao estado da Agricultura regional, apontava para a natureza e formação geológica da Ilha, a escolha em fazer agricultura em terra mais adaptada à floresta, o entusiasmo excessivo das boas colheitas aquando do povoamento, o aumento da taxa de natalidade e a consequente divisão de bens pelos filhos do casal, a dificuldade de se instalar indústrias, hábitos antigos de cultivo da terra, o egoísmo do próprio homem, o desleixo dos governantes e a falta de dinheiro público. Havia por isso que modificar o estado em que se encontrava a Agricultura, apelando à colaboração entre governantes e governados, técnicos e agricultores, para que os vindouros pudessem ser mais felizes. À terceira e última questão acerca das perspectivas para melhorar a Agricultura madeirense, sugeria o aumento das áreas aráveis por via do emparcelamento que tinha sido empregue naquele tempo, no continente, permitindo boas condições para a mecanização agrícola. A mão-de-obra excendentária resultante destas duas medidas seria absorvida pelo sector do Turismo sobretudo e pela emigração de famílias. Além disso, defendia a mudança do regadio por alagamento, dando preferência pela rega por aspersão. A abertura de caminhos municipais, a redução de intermediários entre a produção e o consumo com a criação de cooperativas, dando o exemplo da Cooperativa Agrícola do Funchal e das cooperativas de lacticínios, eram outras recomendações indicadas. A produção de culturas temporãs, isto é, que se desenvolvem mais cedo, como por exemplo, o tomate, o feijão verde, a cebola e o morango. A floricultura com vista à exportação e ao mercado local. A vinha e a fruticultura subtropical, como o abacate, a papaia, a anona e o maracujá, eram aconselhados para terrenos ocupados com bananeira e cana-de-açúcar em cotas menos favoráveis a estas culturas. O sector do Turismo era visto como uma solução para o escoamento dos produtos. A influência do ensino no nível de vida do trabalhador rural, na sua formação e educação, dignificando-o e dando-lhe o devido lugar na sociedade, foi igualmente mencionada.
Em suma, parte do que o Engenheiro Rui Vieira escreveu há seis décadas ainda é actual, pese embora a evolução da Agricultura madeirense e da Região desde então. Que este apontamento desperte a vossa curiosidade em consultar o seu acervo disponível no ABM.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.