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"Madeira – A Epopeia Rural", 70 anos depois

por Agricultando, em 25.06.23

Este texto foi publicado no Diário de Notícias, no dia 25 de Junho de 2023.

O nome de Joaquim Vieira Natividade (1899-1968), ilustre Agrónomo e Engenheiro Silvicultor já aqui foi recordado algumas vezes. Natural de Alcobaça, é considerado por muitos como o Técnico que mais contribuiu para a modernização da fruticultura e da subericultura portuguesas. Da extensa lista estimada em cerca de 320 trabalhos publicados ao longo da vida, constam livros, artigos técnicos, lições, conferências, relatórios, entre outros, muitos dos quais inéditos. Dessas publicações há três dedicadas ao Arquipélago da Madeira: "Fomento da Fruticultura na Madeira" (1947) editado pela Junta Nacional das Frutas e pelo Grémio dos Exportadores de Frutos e Produtos Hortícolas da Ilha da Madeira e reeditado em 2018 pelo então Serviço de Publicações da Direcção Regional da Cultura da Madeira; "A Técnica ao Serviço do Agricultor Madeirense" (1952), palestra que fez parte do programa "A Rádio ao serviço da Agricultura" da Estação Rádio da Madeira e que foi lida por Vieira Natividade, tendo sido incluída numa separata de quatro páginas do Boletim de Informação e Publicidade da Junta dos Lacticínios da Madeira e "Madeira – A Epopeia Rural" (1953), que resultou de uma conferência que foi proferida a 22 de Junho de 1953, na Associação Industrial Portuense a convite do Centro Madeirense do Porto, cujo texto foi publicado em livro pela Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal e reproduzido na revista Islenha n.º 61 de Julho-Dezembro de 2017. Setenta anos depois, é sobre "Madeira – A Epopeia Rural", um dos mais belos textos acerca do Agricultor e dos seus feitos nestas Ilhas desde a descoberta até meados do século passado, que nos vamos debruçar nas próximas linhas.

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(Direitos Reservados)

«Foi essa a Madeira que Zarco e Tristão descobriram, Ilha misteriosa dos arvoredos sombrios, de rochas e de bruma, e que por esforços sobre-humanos viria a transformar-se na Ilha dos frutos e das flores, jardim do mar, horto edénico de eterna Primavera verdejante!», assim escreve Joaquim Vieira Natividade na introdução. Mais à frente afirma que «[…] Para mim, na fisionomia da Madeira, ficou sempre gravada a sua origem dolorosa e trágica, e talvez por isso é a Madeira agreste e selvosa, a Madeira da bruma e dos alcantilados cerros, rude, austera e triste, a Madeira que eu melhor sinto e compreendo porque só aí podemos entrever quanto trabalho quanto sofrimento, quanto esforço houve que despender, e quantas fadigas houve que suportar o homem, para domar os elementos insubmissos, para tornar a Ilha lânguida, hospitaleira, amiga, e para conseguir que brotassem da rocha os frutos e as flores, a riqueza e a abundância». Vieira Natividade constata que «Em muitos lugares, o trabalho multissecular do homem adoçou a primitiva bruteza da montanha. Câmara de Lobos, o Estreito, o Campanário, o Arco e o Estreito da Calheta e, na costa norte, o Porto da Cruz – gigantescos anfiteatros, alguns dos quais restos das antigas crateras demolidas pela abrasão – transformaram-se em hortejos verdejantes. […] Na vertente sul, dentro da área irrigada, a mancha incrível de retalhos, de minúsculos poios que se sobrepõem e ajustam ao sabor do relevo do solo como peças de um gigantesco puzzle, começa nas fajãs, trepa pelas falésias, assalta as encostas e as lombadas, e só cessa no alto, junto à coroa florestal, onde a água escasseia e o clima já é adverso à cultura agrícola intensiva». Na descrição da Ilha ainda acrescenta que «Para lá da Ribeira Brava até à Ponta do Pargo, extremo ocidental da Ilha, […] as culturas tropicais aninham-se nas fajãs, despojos da ruína das falésias, muitas das quais isoladas da Ilha por escarpas alterosas e que, para cúmulo do absurdo, embora ligadas à terra, só com ela comunicam pelo mar. Fajã dos Padres, Tabua, Madalena, Jardim e Paul do Mar são vergéis de bananeiras que as ondas quase beijam, exemplos incríveis da luta heróica do madeirense pela conquista da terra». Joaquim Vieira Natividade, não obstante, estar ciente que a Madeira na década de 50 do século passado já era um destino turístico, faz uma breve referência à «[…] Madeira estática, cenográfica, sorridentemente hospitaleira, a Ilha mundana que se esforça por atrair e cativar os visitantes», mas enaltece sobretudo que «[…] a Madeira é melhor do que tudo isto: é a epopeia do trabalho, a glorificação do esforço humano. Tão presente está por toda a parte a influência do homem, o fruto magnífico da sua labuta heróica, o rude afago das suas mãos calosas e ásperas, que a paisagem, por assim dizer, se embebeu dessa presença e se humanizou». Numa linguagem cinematográfica, Vieira Natividade indica que «Rochas e água, o eterno conflito do estático com o dinâmico que tragicamente se reflecte na orografia da Ilha. A água paciente, ágil, perversa, desgasta e corrói o esqueleto rochoso, hirto, impassível, severo. Como há milhares de séculos atrás, a água móvel parece empenhada em aniquilar a montanha inerte» e «[…] O milagre dos madeirenses foi harmonizar esses dois elementos hostis, tarefa ciclópica que data de há quinhentos anos, e que hoje prossegue com a mesma coragem e o mesmo ardor. […] E o homem, o pigmeu, atacou a montanha. Durante séculos não cessou o trabalho rude da picareta e da alavanca e à custa de vidas, de suor e de sangue talharam-se na rocha as gigantescas escadarias, sem que o alcantilado das escarpas, a fundura dos despenhadeiros ou a vertigem dos abismos detivessem os passos do titã. Monumento este único no mundo, porque jamais em parte alguma, com tão grande amplitude, tanto esforço humano foi empregado na conquista da terra». Sobre esta alteração profunda no território, descreve com pormenor: «E o vilão ataca e tritura a rocha para a transformar em solo agrícola; geme sob o peso de enormes pedras para construir um socalco, marinha pelas falésias para conquistar um palmo de terra, mesquinha gleba pouco maior por vezes do que um ninho de águias alcandorado no pendor de uma fraga. Antes de ser agricultor, é cabouqueiro e arquitecto. Labuta de sol a sol e transforma o seu horto, a sua courela, num jardim. Onde a água corre, o agricultor heróico e operoso faz milagres; a levada empurra-o e ele empurra a levada. Novos poios se sobrepõem a outros poios, e assim esse trabalhador humilde, além de transportar sobre os ombros o peso da sua cruz, constrói nos degraus da montanha o seu próprio calvário […]».

Em suma, as sábias palavras de Joaquim Vieira Natividade remetem-nos para a proeza dos nossos antepassados em transformar a Ilha da Madeira, de vegetação exuberante, relevo inóspito e de águas caudalosas que corriam nas ribeiras, num lugar aprazível com poios e levadas, chão fértil e canais de irrigação, que permitissem tirar o sustento de quem para aqui veio em busca de um futuro melhor…

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