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"Água Vai, Pedra Leva"

por Agricultando, em 30.08.15

Este texto foi publicado no dia 30 de Agosto de 2015, na revista "Mais" do Diário de Notícias.

O título entre comas pertence a uma minissérie de dois episódios produzida em 2014 sobre as levadas da Madeira e que foi transmitida nas madrugadas de 13 e 14 de Julho, na RTP 2, horário incompreensível atendendo ao seu conteúdo e tratando-se de um canal de televisão público. Bom, mas no Verão este tema tão querido entre nós teria de constar nesta secção de opinião sobre Agricultura, bem como de enaltecer essa obra notável, digna de alcançar o representativo estatuto de Património Mundial da UNESCO, que se deseja que aconteça tão breve quanto possível. Da autoria da jornalista Sofia Leite, o primeiro episódio começa com o dia-a-dia de um levadeiro da freguesia do Arco da Calheta, concelho da Calheta, José Abreu, que descreve as suas funções, mormente a distribuição da água pelos regantes de uma determinada zona, a limpeza dos canais e o cumprimento do horário da água de rega destinado a cada um dos Agricultores. Entretanto, o narrador recorda que a Madeira tem 1.500 quilómetros de levadas (dos quais cerca de 40 quilómetros são túneis) desde o povoamento até aos dias de hoje, e que 96 homens e quatro mulheres levadeiros, tudo fazem para que o precioso líquido chegue aos terrenos agrícolas. Fica-se a saber que no fim da década de 30 do século passado, os pedidos dos madeirenses de ter mais água para o amanho, são finalmente atendidos pelo Governo Central, que irá desenvolver a rede de levadas, aproveitando igualmente a energia da água para a produção de electricidade. Em 1939, desloca-se à Região, a primeira missão de reconhecimento liderada pelo Engenheiro Manuel Amaro da Costa (Alentejano natural da freguesia de São Martinho das Amoreiras, concelho de Odemira) que seria o mentor dos projectos a cargo da Comissão Administrativa de Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira (CAAHM), que surgiria quatro anos depois e que subsistiria até 1953, ano de conclusão dos trabalhos. Neste programa, vêem-se imagens de um filme inédito dos anos 50 do século XX encontrado nos arquivos da CAAHM, onde uma equipa de técnicos e engenheiros visita ou inspecciona o decorrer das obras e trabalhadores cortam e perfuram a rocha.

Ao longo dos dois episódios, ouvimos os testemunhos daqueles que trabalharam nesta singular obra, desde o rocheiro Gabriel Mocótó, os topógrafos Jorge Sumares e José Luís, o ajudante de máquinas, José Augusto, o condutor Manuel Avelino, o trabalhador Joaquim Poeira, entre outros. Sem excepção, todos referem a grande dificuldade de executar as suas tarefas em locais onde a natureza era hostil devido aos abismos e ao relevo acidentado, mas que ao mesmo tempo, era bela. As descrições técnicas são explanadas pelo Administrador da Empresa de Electricidade da Madeira, Engenheiro Mário Jardim Fernandes, que sintetiza o propósito da existência das levadas: água para o cultivo agrícola e água para gerar electricidade através das centrais hidroeléctricas. O Engenheiro Técnico Agrário Rocha da Silva (na altura, Director Regional de Florestas e Conservação da Natureza) lembra o lado menos bom destes trabalhos, a perda de vidas humanas, relatando o episódio do Pe. Ângelo de Freitas que numa ocasião se deslocara a um lugar, por não ter sido possível resgatar os corpos, dissera então que, “a minha alma virá cá mais vezes, o meu corpo não!”, confirmando a extrema dificuldade dos acessos talhados na rocha das encostas agrestes. A este propósito, a filha do Engenheiro Manuel Amaro da Costa, Maria do Rosário Carneiro, enaltece a coragem de quem engendrou a obra e de quem participou na construção das levadas, referindo-se ao seu pai e demais colaboradores. No segundo episódio, fala-se dos Guardas de Canal que asseguram a manutenção dos canais, podendo ver-se a Levada do Caldeirão Verde e acompanhando um dia de trabalho de José Manuel e João Martins que exercem aquela função em turnos de três, quatro ou cinco dias seguidos. Sobre as obras da CAAHM, mostram-se excertos de um filme de propaganda do Estado Novo de António Lopes Ribeiro, aquando de uma inauguração feita pelo então Presidente da República, General Craveiro Lopes, acompanhado do Ministro de Obras Públicas e demais entidades civis, militares e religiosas. Por ter havido diversas inaugurações em função das centrais hidroeléctricas que eram concluídas, num desses momentos, o Engenheiro Amaro da Costa dizia que a “água transformada em luz e força, e uma cidade, e daqui a pouco uma ilha inteira, suspensas da perfeita e harmoniosa conjugação do funcionamento das dezenas e dezenas de máquinas e aparelhos que por aí vemos e adivinhamos: eis a síntese descolorida desta central. (…) e vivificando a gleba do agricultor ao longo dos 35 quilómetros de aqueduto que daqui se estende até às portas do Funchal, vai criar e distribuir riqueza, conforto e bem-estar, por milhares e milhares de pessoas, que mal suspeitam da sua origem e criação”. Estas palavras sábias faziam todo o sentido naquela altura e mantêm-se actuais, sendo que no documentário, o Engenheiro Paulo Jervis corrobora que estas obras da Comissão são um sistema vital para a agricultura do presente. A Professora Doutora Susana Prada da Universidade da Madeira (assim é apresentada no programa), actual Secretária Regional do Ambiente e dos Recursos Naturais, releva os dois tipos de obtenção de água, a precipitação e a precipitação oculta, sendo que esta última resulta da retenção das gotículas de água do nevoeiro, que ao passarem pela vegetação, pingam depois para o solo, originando uma fonte de recarga mais constante que a chuva. Apesar disso e como é dito neste documentário, “a água não escasseia, mas também não sobra”, lembrando o quão precioso é este líquido. O Doutor Nelson Veríssimo situa em termos históricos que o Plano dos Aproveitamentos Hidráulicos veio tornar claro que a água é um bem público, tendo havido por isso forte contestação dos proprietários de levadas que vendiam água aos regantes, situação que sempre aconteceu na Madeira, apesar da Coroa Portuguesa ter-se oposto à venda de água por particulares, logo no início do povoamento. A terminar, o narrador refere que as obras da CAAHM beneficiariam 20.000 hectares de cultivo e permitiu instalar uma potência hidroeléctrica a rondar os 17.000 quilowatts, e que com a água disponível para o cultivo, a paisagem transformou-se, permitindo que os poios fossem agricultados. Depois de 1953, o Engenheiro Manuel Amaro da Costa regressaria à Madeira para rever e despedir-se da sua obra, o Canal do Norte. Sobre este excelente documentário com uma sublime banda sonora, defendo que o mesmo deveria ser de visionamento obrigatório, quer pelos residentes (também mostrado aos alunos dos diferentes níveis de ensino), quer pelos visitantes, para melhor entendimento do porquê da água ser tão estimada e cobiçada na Madeira. No momento em que escrevo este artigo, desconheço se a RTP-Madeira vai transmitir esta minissérie, pelo que o leitor desejando vê-la, poderá aceder à plataforma "RTP Play" através dos seguintes endereços:

http://www.rtp.pt/play/p1926/e201547/agua-vai-pedra-leva (1.º episódio)

http://www.rtp.pt/play/p1926/e201634/agua-vai-pedra-leva (2.º episódio)

E porque água é vida, e porque fui pai em finais de Julho, dedico este "Agricultando" ao meu filho Joaquim e à minha mulher Suzana, verdadeiras fontes de inspiração para mim!

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publicado às 17:42


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